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O anúncio da nova turnê de Ivete Sangalo, intitulada Ivete Clareou, provocou reação de integrantes do grupo musical Clareou, que insinuaram a existência de uma violação de marca. A polêmica, rapidamente amplificada em redes sociais, expõe o risco do uso instrumental do direito para objetivos, possivelmente, diversos do tutelado pela lei.
Em primeiro lugar, convém afastar qualquer leitura apressada: a turnê em questão não faz referência ao grupo Clareou. Sua inspiração é inequívoca: a força simbólica da ancestralidade, da religiosidade e da musicalidade afro-brasileira de Clara Nunes. A palavra “clareou”, portanto, não é referência a nome de banda; é verbo conjugado, metáfora, saudação, evocação espiritual. Inscreve-se na tradição da criação artística, protegida constitucionalmente.
O direito da propriedade intelectual confere exclusividade sobre o uso de uma marca de acordo com determinadas classes e finalidades. Ele visa proteger a identificação de produtos ou serviços no mercado, evitar confusão de origem e coibir concorrência desleal. Não se aplica, portanto, a expressões artísticas utilizadas em títulos de turnês, shows ou composições. Para que se configure uma tentativa de se apropriar da identidade mercadológica de outrem, não basta a coincidência lexical, é preciso que haja sobreposição de campo e intenção de parasitar ou desviar clientela — elementos ausentes, por completo, neste caso.
Ivete Clareou não é um produto concorrente de um show do grupo Clareou. Tampouco se vale do nome alheio para obter vantagem indevida. Ao contrário: a artista tem trajetória consolidada, identidade própria, presença autônoma no mercado cultural. Para Ivete, provavelmente, muito melhor seria se “Clareou” fosse inédito — porque certamente não lhe interessa tomar emprestada a reputação do grupo homônimo, nem tampouco emprestar sua reputação a ele.
Usar o registro de marca para censurar configura abuso de direito – uma forma sutil de lawfare, que desvirtua a finalidade do direito para provocar desgaste público ou, quem sabe, obter alguma vantagem à custa de uma controvérsia artificial. É o direito usado como trincheira, e não como ponte.
Registrar uma marca não cria um monopólio. O verbo “clarear” e suas formas conjugadas pertencem à língua portuguesa. Seu uso nos mais diversos contextos, inclusive o artístico, não deve reclamar anuência prévia de ninguém. Admitir isso seria negar à língua portuguesa sua condição essencial: ser de todos. Se há algo que a arte faz é tensionar fronteiras, criar ambivalências, sugerir múltiplos sentidos.
O Judiciário, quando eventualmente provocado, deve zelar para que o direito não se torne instrumento de censura. No livre mercado da cultura, vence quem cria com liberdade, quem emociona, provoca e transforma. Registrar uma palavra não basta para determinar quem sabe usá-la melhor. A cultura não pede licença, ela reinventa, improvisa.