Condomínios não são microestados autônomos, com competência para restringir direitos fundamentais com base em cláusulas vagas ou temores não comprovados
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A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), firmada nos recursos especiais nº 1.819.075 e nº 1.884.483, tem considerado válidas convenções condominiais que proíbem a locação por temporada de unidades residenciais. Naqueles precedentes, firmou-se o entendimento segundo o qual a alta rotatividade de inquilinos poderia desvirtuar a função a função residencial da unidade, comprometendo a convivência no condomínio.
O tema voltará à pauta do tribunal em breve, com o julgamento do REsp nº 2121055/MG, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, em que recentemente o Airbnb, conhecida plataforma de locação por temporada, foi admitido como assistente. O STJ definirá quão amplas podem ser as restrições a priori ao exercício do direito de propriedade impostas pela vontade coletiva dos condôminos. Trata-se de uma oportunidade para que o tribunal repare o entendimento anterior, limitando seu alcance. Será, também, uma ocasião para que se avalie o impacto econômico e social dessa atividade, que passou a ter papel expressivo na dinâmica de muitas cidades.
O direito brasileiro não distingue locações de curto prazo de acordo com o veículo utilizado para o anúncio e a formação de contratos. Ao disciplinar a locação de imóveis urbanos, a Lei Federal nº 8.245, de 1991, especifica três tipos ideais de locação: a residencial (artigos 46 e 47), a não residencial (artigos 51 a 57) e a locação por temporada (artigos 48 a 50). Sejam iniciados a partir de placas afixadas no próprio imóvel, anúncios em periódicos impressos ou aplicativos, os contratos de locação serão classificados de acordo com os tipos legais por suas características próprias. É irrelevante recorrer ao veículo por meio do qual o objeto foi anunciado para determinar sua natureza.
Uma estadia de poucos dias pode ser tão residencial quanto uma locação por 30 meses, desde que o uso da unidade permaneça restrito a fins de habitação. A locação por temporada, inclusive quando intermediada por plataformas digitais, não transforma o imóvel em hotel nem altera sua função social.
Embora não seja absoluto, o direito à propriedade é expressamente protegido pela Constituição Federal (artigos 5º, XXII, e 170, II). O uso da propriedade pode ser disciplinado, sobretudo em ambiente condominial, mas essa disciplina deve ser adequada, necessária e proporcional ao fim que se propõe atingir. Pressupostos abstratos e preconceituosos contra modelos emergentes de ocupação urbana não são suficientes para restringir locações por temporada.
Em muitos condomínios, locações de curta duração são praticadas há anos sem qualquer ocorrência relevante. Na ausência de dados que sustentem que a locação por aplicativo atraia inquilinos mais suscetíveis ao crime do que a locação anunciada por outros meios ou, ainda, que a proibição de locações por temporada seja capaz de reduzir a suscetibilidade de um condomínio a crimes, não haverá justificativa para a proibição a priori desse uso do imóvel.
É possível regrar a utilização do imóvel por não proprietários, aumentando a percepção de segurança dos condôminos, sem prejudicar, de forma definitiva, a utilização econômica do bem. Pode-se, por exemplo, reforçar as penalidades aplicáveis em caso de violações ao sossego e à segurança do condomínio ou até mesmo estabelecer regras claras e mais rigorosas a respeito da admissão e partida de inquilinos, exigindo-se, por exemplo, a apresentação de cópias de documentos e certidões. A tecnologia, inclusive, pode auxiliar nesse controle, com sistemas de registro eletrônico e monitoramento de acesso.
A locação é uma das mais importantes expressões da faculdade de fruir da coisa, inerente à propriedade (artigo 1.228 do Código Civil). Em localidades turísticas ou com vocação sazonal, como cidades litorâneas e destinos de férias, boa parte do valor de mercado das unidades decorre justamente de sua aptidão para gerar renda com locações por temporada. Proibir esse uso equivaleria, na prática, a desvalorizar os imóveis e inviabilizar seu aproveitamento econômico em períodos não destinados ao uso pessoal do proprietário, além de comprometer o potencial de atração de investimentos imobiliários e prejudicar a sustentabilidade financeira de empreendimentos.
Num condomínio, o direito de propriedade de um condômino ou de um grupo de condôminos eventualmente majoritário não se sobrepõe nem anula o de outros condôminos. O direito brasileiro reconhece que os direitos fundamentais têm eficácia perante terceiros (drittwirkung): a autonomia privada é não pode sobrepujar o teor de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. No exercício do poder de auto-organização, previsto no artigo 9º, parágrafo 3º, “c”, da Lei nº 4.591, de 1964, todos os condôminos e o condomínio devem respeito ao direito de propriedade de cada condômino, individualmente considerado.
É legítima a preocupação de preservar a convivência, a segurança e sossego dos condôminos. Não obstante, qualquer limitação ao direito de propriedade deve ser feita pelo órgão condominial competente a partir de fundamentação adequada e concreta, adotando-se, preferencialmente, a medida menos lesiva ao direito de propriedade. Condomínios não são microestados autônomos, com competência para restringir direitos fundamentais com base em cláusulas vagas ou temores não comprovados.